31 outubro 2006

Foi bonita a festa, pá *

"O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele inteira fica arrepiada

E me beija com calma e fundo

Até minh'alma se sentir beijada, ai



O meu amor

Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos

Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes

Depois brinca comigo

Ri do meu umbigo

E me crava os dentes, ai


(...)"


O meu amor
- Chico Buarque 1978

* primeira frase da segunda versão da música Tanto Mar

30 outubro 2006

Palavras #3

"E mesmo, pensar nesta coisa tão sublime e rudimentar – a fala (...). Porque nós não reflectimos. A fala. A transubstanciação da matéria, das coisas. A quantidade espantosa de músculos, de instrumentos vocais, para dizer esta coisa simples que é por exemplo «cu». A quantidade espantosa de movimentos, de adaptações. Sem falar já da trapalhada dos comandos cerebrais. Ou dos arranjos emotivos que acompanham a operação, com o seu trabalho nervoso que é regulado pela educação que teve e a religião que nos deram, a as amizades e os ódios e as inclinações sanguíneas. Ou do esforço enorme para dar ao fole que faz vibrar as palhetas do som. E depois, falar é tão vagaroso. Dizer por exemplo «está uma tarde pavorosa de calor» leva um tempo imenso a despachar. A gente diz a primeira palavra, que leva já muito tempo, e tem de esperar pela segunda que também, e ainda pela terceira, até que já não haja mais nenhuma. Mas o calor é rápido, sente-se logo. E escrever ainda é mais longo e ler é mais trabalhoso. Há os caracteres que se desenham, e há depois a sua transposição para os sons que querem dizer, e há depois todo um complicado trabalho dos mecanismos de inteligência memoria imaginação – uma fala é tão rudimentar."

in Para Sempre - Vergílio Ferreira

26 outubro 2006

Camisola 10


"Eu quero ser para ti a camisola dez
Ter o Benfica todo nos meus pés
Marcar um ponto na tua atenção
Se assim faltar a festa na tua bancada
Eu faço a minha última jogada

E marco um golo com a minha mão."

Zorro – João Monge e João Gil


Mãe… Sai da frente da televisão… Vai começar o jogo. Quantas vezes disse eu isto? Perdi-lhe a conta. Nessas noites as unhas não duravam muito e o nervosismo reflectia-se na quantidade de vezes que o pé batia no chão. Consigo lembrar-me de noites europeias gloriosas (4-4 em Leverkusen quando tudo parecia perdido), de jogos do campeonato que ficaram para a história (o 3-6 em Alvalade), de jogadores que ficaram esquecidos (Thern, Valdo, Paneira).
Hoje não consigo compreender o que me fazia ter esse fascínio e paixão (ou seria obsessão?!) pelo futebol, pelo Benfica…
Algo inexplicável, um mistério da vida.;)

25 outubro 2006

Mais real do que a realidade

"O carro avançava a caminho de Sintra, sem grande velocidade. Fez-se um silêncio. A Teresa recitou:
- «No meu Chevrolet, pela estrada de Sintra...» - e depois perguntou:
- Achas que o Fernando Pessoa tinha carta de condução?
O Gonçalo respondeu pronto:
- O Fernando Pessoa não tinha. Quem tinha era o Álvaro de Campos...
A Teresa esteve uns segundos sem perceber a graça, mas depois reparou:
- Que estupidez!... Não é que eu ia acreditando!...
- Não se aflija. Aquilo tudo é tão real... mais real do que a realidade..."

in Os Nós e os Laços - António Alçada Baptista

23 outubro 2006




"yes,
us people are just poems
we're 90% metaphor
(...)"

Self Evident - Ani DiFranco

Chuva












Musician in the rain - Robert Doisneau


"as coisas vulgares que há na vida
não deixam saudade
só as lembranças que doem
ou fazem sorrir
há gente que fica na história
na história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir
são emoções que dão vida
à saudade que trago
aquelas que tive contigo
e acabei por perder
há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer

a chuva molhava-me o rosto
gelado e cansado
as ruas que a cidade tinha
já eu percorrera
ai... o meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob a chuva
há instantes morrera
a chuva ouviu e calou
o meu segredo à cidade
e eis que ela bate no vidro
trazendo a saudade"

Jorge Fernando

http://www.youtube.com/watch?v=OpExb2hCYTs&mode=related&search=

19 outubro 2006

Promessas

Eu prometi
Tu prometeste
Ele...

18 outubro 2006

Palavras #2











Avenida de La Vida II - Bertram Bahner



"Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte."

Alexandre O'Neil


16 outubro 2006

Nunca ninguém soube porque razão aquele amor terminou exactamente no final do ano. Também não era importante saber-se. Não seria por alguém saber que a dor seria menor, que a compreensão do terminar (quando os sentimentos ditavam o contrário) seria maior. A vida tem destas impossibilidades, destas decisões difíceis que fazem crescer.
Quase 8 anos passados o telefone em casa tocou. Era ele. Ela soube que tinha sido ele, mesmo antes de lhe darem o recado na totalidade. Nos últimos meses ele tinha voltado a entrar na cabeça dela enquanto dormia. A dor tinha passado, a esperança que ele mudasse de ideias mantinha-se ao fim de todo este tempo, mas ela sabia ser impossível.
Encontraram-se ao fundo da Rua da Sofia, à beira da Câmara Municipal. Era Dezembro, algumas semanas antes do Natal. Cumprimentaram-se e falaram como se nunca tivessem estado separados. Das mudanças na vida de cada um, das pessoas que foram encontrando ao longo dos anos, das grandes e das pequenas novidades, dos amores actuais. A conversa fluiu facilmente até que ele… Sabes, foste tu a responsável pela grande opção que fiz na minha vida. De ir para França estudar Teologia, de ter escolhido servir a Deus. Ela sorriu, com vontade de chorar. Ele continuou… Precisava dizer-te isto. Foste uma das pessoas mais importantes da minha vida. Queria muito que estivesses presente no meu casamento. Aquela dor que ela pensava ter passado voltou. Forte, mas não o suficiente para a impedir de dizer que estaria lá, no dia marcado, com muito gosto, porque ele também tinha sido uma das pessoas mais importantes da vida dela… ainda era… pensou ela.
Dia marcado e ela apareceu em casa dele, para os costumeiros comes e bebes. Não sabendo o caminho para a igreja ele ofereceu-se para ir com ela. Ele agradeceu-lhe por ela ter aceite o convite e contou-lhe como amava a noiva. Ela sorriu, e colocou os olhos na estrada…
A cerimónia foi linda, a mais bonita a que ela alguma vez assistiu. Ele cantou para a noiva, e ela recordou-se do tempo deles, do poema que ele lhe deu, das palavras que ele lhe disse, dos beijos e carícias que trocaram, do primeiro olhar e do primeiro sorriso que tudo desencadearam. E sorriu. Apesar dele não ter sido o seu primeiro homem era como se tivesse sido.

13 outubro 2006

Palavras #1

"Durante alguns anos devíamos fazer uma cura de palavras e de escrita. Mudos e cegos até ficarmos curados. Há uma ténue e trágica ligação de dependência entre a vida e as palavras. É uma ponte de corda sobre um abismo. Não se pode viver sem pensar e não se pode pensar sem palavras. Mas as palavras, quando despojadas da vida, são a hemorragia, o esvaziamento da alma. A hemorragia das palavras está a perder a nossa civilização. Os homens e as sociedades estão a esvaziar-se. Vivemos uma existência anémica porque abusámos das palavras. Os discursos não param. Perdemos a nossa vida em discussões, em confissões públicas, em debates, em processos. Vai ver que vamos passar à história como a idade dos processos. Estamos a ser sangrados pelas palavras."

in Os Nós e os Laços - António Alçada Baptista

11 outubro 2006

Adolescentes - Amparo Bellido Sanjuan

15 anos. Ingénua, sonhadora, de sorriso e coração aberto. Tudo era simples nessa altura, até o amor. Uma viagem de estudo. Um olhar mais intenso e demorado; um sorriso sincero e envergonhado como resposta a esse olhar, e tudo começou… Nos dias seguintes o olhar e o sorriso deram lugar a palavras, depois a beijos e a carícias. Estava consumado aquele amor de adolescência. Tudo simples… Até que um dia surgiu o inevitável. Ele apareceu de rosto fechado, parecia que transportava o mundo em cima dos ombros. Ela percebeu logo, mas… não pode ser, ainda ontem ele me jurou amor eterno e me disse que não podia viver sem mim… Ele disse que tinha de terminar tudo, que continuava a gostar muito, mas não podia explicar… Tinham de terminar. 15 anos e não podia explicar?! Tudo era simples, como é que não podia explicar?! Continuaram a ver-se todos os dias, falavam-se como se fossem melhores amigos, olhavam-se como no primeiro dia… De quando em quando ela pedia uma explicação. Já tinha passado tanto tempo (um mês quando se é adolescente é uma eternidade)... Mas nada. Ele continuava mudo de explicações. Até que, numa outra visita de estudo, os amigos os obrigaram a falar. Não falaram. Olharam-se, tocaram-se e beijaram-se! Ela esperou pelo dia seguinte, ele prometeu que lhe explicaria tudo… E explicou. Que vivia amargurado por vê-la todos os dias e não a tocar, que dormia e acordava a pensar nela, mas… mas o quê? Perguntou ela… Vamos voltar mas no final do ano teremos de terminar… disse ele. E explicou-lhe tudo. Ela concordou, inconscientemente na esperança que até ao final do ano ele mudasse de ideias. Mas não mudou. O final do ano chegou e todos foram apanhados de surpresa. Mas como aconteceu, porque aconteceu? Ninguém sabe, eles não contam.

10 outubro 2006


"Cantava em inglês, com acentuado sotaque francês. Is this the evening of the day, I sit and watch the children play. Por vezes, quando não se lembrava das palavras certas, terminava deliciosamente em surdina."
in Os Emigrantes, W. G. Sebald