Shinidamachu
Um dia, porém, a morte surge diante de nós com o rosto material e próximo de alguém que amamos. E descobrimos, subitamente, que ela sempre ali estivera, ao nosso lado, dando-nos a mão, falando-nos ao ouvido com a nossa própria voz.
Então algo vulnerável se desmorona, o mundo que havíamos construído para nós, de um momento para o outro, torna-se inabitável e desconhecido. Nomes, coisas, acontecimentos (o próprio acontecimento da morte) se desvanecem e sentimo-nos partir de nós mesmos para fora de nós como se sonhássemos.
(...)
De todas as vezes que vi de perto o rosto nenhum da morte, os seus olhos fitando-me de dentro do olhar ausente de um amigo, me senti desse modo no mundo, desenraizado de qualquer coisa maior que eu.
Um amigo (porque a amizade é a mais alta e desprendida forma do amor) é isso, uma referência da nossa identidade (ou lá o que é aquilo que somos), uma habitação que mais do que habitamos, nos habita ela, e por isso é que, de cada vez que um amigo desaparece, temos que recomeçar do princípio a nossa própria construção.
Manuel António Pina in Lembrança dos amigos mortos - Crónica, saudade da literatura
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