23 dezembro 2006

Ladainha dos póstumos Natais

"Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que me hão-de lembrar de modo menos nítido.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito.”

David Mourão-Ferreira

14 dezembro 2006



Erik Truffaz, Murcof and Talvin Singh live at the 2006 Montreux Jazz festival. This is the track RIOS from the album REMEMBRANZA, played as encore.

09 dezembro 2006

Palavras #8

Grand Central Station, New York

(…) uma vez, contei-lhe a história do padre Anchieta: que tinha urgência em chegar a uma aldeia e pediu aos carregadores índios para andarem depressa. Ao terceiro dia, pararam e o padre perguntou-lhes porque é que não andavam, sabendo como ele precisava de chegar à aldeia. Eles responderam: “É que nós temos andado depressa demais e a nossa alma ficou para trás. Temos de ficar aqui à espera que ela chegue e entre outra vez no corpo para podermos continuar.”

in O Riso de Deus - António Alçada Baptista

04 dezembro 2006

Varrer a casa ou limpar o pó?








A Persistência da Memória - Salvador Dali


A conversa decorria ligeira enquanto bebíamos um chocolate quente. A noite estava muito fria, como é usual em Coimbra nesta época do ano. Quase sem nos apercebermos resvalámos para as memórias de infância. É recorrente quando nos encontramos, estranho seria não falarmos sobre isso. Ficámos eufóricas quando nos apercebemos que nos recordávamos dum dia à tarde em que brincávamos às casinhas.

- E a discussão que tivemos? Lembras-te?

- Claro! O que se faz primeiro quando se limpa a casa: varrer o chão ou limpar o pó? Eu dizia que era limpar o pó, tu varrer o chão. Tinhas razão, mas tivemos de ir chamar a minha mãe para desempatar.

As mesas do lado olhavam para nós como se fossemos loucas. Ríamos que nem perdidas a recordar essa tarde: o tempo solarengo, as flores amarelas no quintal…

É um sentimento reconfortante saber que uma mesma memória pode persistir, ao fim de vinte anos, em duas vidas diferentes.

(E nunca mais me esqueci que primeiro se varre a casa e só depois se limpa o pó.)