"As espécies que não desenvolveram a escrita valem-se da memória instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde nasceu sem ter que consultar um parente ou um mapa.(...) Já o Homem pode ser definido como o animal que precisa tomar nota." Luís Fernando Veríssimo
30 junho 2008
Viagem adiada - Alberto Calheiros
"Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto
das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;
Hei-de vê-la levar de aqui,
Hei-de existir independentemente dela.
Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Mais vale arrumar a mala.
Fim."
As almas são desertas e grandes - Álvaro de Campos
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
10 comentários:
Grande Álvaro de Campos!
até parece fácil escrever assim...
:)
Ontem vim aqui várias vezes e não fui capaz de comentar. Esperei q alguem o fizesse antes de mim para perceber se teria feito a mm interpretaçao que eu. jfdourado não fez, respirei de alívio :) Acrescento, entao, q adoro este poema e q, para mim, Alvaro de Campos, está la no topo (mas isso já tu sabias!). BJ.
(vontade de voltar a viajar ao olhar para esta mala linda!!!)
jorge: pena só parecer;)
ticha: amiga és uma maluca:D eheh
andreia: foi essa a vontade quando encontrei a foto... *
O meu heterónimo preferido...simplesmente genial em cada letra.
Obrigada pela partilha*
este mágico Julho
que alimenta a vontade
de viagens
olha ainda ontem estive a beber uns copos com o álvaro. tá o mesmo de sempre. ;)
fora de qualquer viagem:
malas: pouco vou: sou
na da
~
Minha querida:
Que grande orgulho. A alegria que me deu este link. Um grande beijo.
Filipa: :)*
angela: e que vontade de partir, correr mundo. *
happy: é um boémio o álvaro;) ele é que tem juízo eh eh *
~pi: na da a acrescentar; nunca ficaria tão bonito:)
muxy-muxy: é uma alegria para mim poder ler o que escreves:) assim na lista da direita é mais fácil chegar lá;) *
Enviar um comentário