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"Hoje, agora, barba feita e inútil, apenas quero dizer que, em vez de de tudo isto, gostava de ter a coragem de ser como aquele escritor americano que há cinco/seis anos conheci em Haia, na Holanda. Desde a hora em que fomos apresentados, ele sentiu uma ternura instantânea e evidente por mim, uma ternura paternal, que aceitei. Era de noite, caminhávamos pelas ruas desertas de Haia, chovia um véu que nos cobria o rosto. Ele passava dos sessenta anos, eu ainda não tinha trinta, falava-me dos filhos que eram homens e lhe telefonavam duas ou três vezes por ano, falava-me da solidão. Disse que estava sozinho há quase quinze anos. Quando lhe perguntei o motivo pelo qual não procurava companhia, respondeu-me que não queria fazer mal a mais ninguém. Essas palavras ficaram-me, ouço-as muitas vezes. Nessa noite, enquanto passeávamos, o escritor americano tropeçou e caiu com muita violência no chão, as mãos escorregaram-lhe quando ia amparar a queda. Tentei ajudá-lo a levantar-se, recusou. Perguntei-lhe se devia chamar uma ambulância, recusou. Disse-me que só precisava de ficar deitado um instante. E assim foi. Ficou deitado no passeio, de barriga para cima, de olhos fechados, com a chuva a cobri-lo devagar. Eu baixei-me e fiquei ao seu lado. Durante esse instante, no silêncio, dentro da dor, houve paz."
José Luís Peixoto - excerto da crónica Não tenho medo de nada, só tenho medo de tudo inserida na Visão nº 853
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