30 outubro 2006

Palavras #3

"E mesmo, pensar nesta coisa tão sublime e rudimentar – a fala (...). Porque nós não reflectimos. A fala. A transubstanciação da matéria, das coisas. A quantidade espantosa de músculos, de instrumentos vocais, para dizer esta coisa simples que é por exemplo «cu». A quantidade espantosa de movimentos, de adaptações. Sem falar já da trapalhada dos comandos cerebrais. Ou dos arranjos emotivos que acompanham a operação, com o seu trabalho nervoso que é regulado pela educação que teve e a religião que nos deram, a as amizades e os ódios e as inclinações sanguíneas. Ou do esforço enorme para dar ao fole que faz vibrar as palhetas do som. E depois, falar é tão vagaroso. Dizer por exemplo «está uma tarde pavorosa de calor» leva um tempo imenso a despachar. A gente diz a primeira palavra, que leva já muito tempo, e tem de esperar pela segunda que também, e ainda pela terceira, até que já não haja mais nenhuma. Mas o calor é rápido, sente-se logo. E escrever ainda é mais longo e ler é mais trabalhoso. Há os caracteres que se desenham, e há depois a sua transposição para os sons que querem dizer, e há depois todo um complicado trabalho dos mecanismos de inteligência memoria imaginação – uma fala é tão rudimentar."

in Para Sempre - Vergílio Ferreira

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